Crónica de Jorge C Ferreira | Um melro e o silêncio

Jorge C Ferreira

 

Um melro e o silêncio

por Jorge C Ferreira

Sinos, gongos, sinetas, cucos, sinais das horas nunca certas. Os ouvidos a explodirem de ruídos que incomodam. Os tímpanos a estalarem. Os tampões para tentar não ouvir o desnecessário, auscultadores, tentar estar no centro do silêncio. Escutar a beleza numa frase lida, num verso inspirado, num quadro exposto. Os ramos das árvores parados do lado de lá das vidraças. Nem um golpe de vento. Nem um pingo de água. Tudo quedo e mudo. O sossego absoluto. É tempo de pensar.

Há quem receba a visita de um melro que teima em vir conversar quando a noite já vai alta. Uma inusitada conversa. O romper do silêncio que vale a pena. Habituou-se. Aparece quase todas as noites. Parece ter adivinhado que precisam da sua companhia. Já trocam palavras em linguagens diferentes. Até ser tempo de descansar. Um outro silêncio. O escuro da noite. Há quem use vendas para não ver o inesperado. Nunca saberá da experiência com que o escuro nos pode deslumbrar.

A noite onde a maioria das pessoas se acalma ou explode. Explosões de loucura sem controlo. A noite sempre esperada. A vertigem do desejo. O temporal que não se espera. Tudo até os corpos cansados se abraçarem para o descanso final.

Já é quase manhã quando passa o carro do lixo. O barulho dos caixotes. A camioneta a tragar os nossos restos. Quanto restará de nós após tudo isto?

Um livro que nos aconchega a noite branca. Outro que nos deixa despertos em busca de uma aurora boreal. O que eu gosto de estar para lá do círculo polar ártico. O branco dos Ursos Polares e a neve. A brancura que nos seis meses nocturnos nos acompanha. Depois seis meses de dia. A festa do primeiro dia em que se vislumbra de novo o sol. Novas cores despontam. Nem todos aguentam esta vida. Os desastres sem explicação. O fim abrupto de vidas. Um homem e uma carabina. Os sinais do perigo.

A população fez um abaixo-assinado para que os sinos da Igreja que tocam cada quarto de hora, se calem a partir do recolher. Petição aceite. Decisão tomada. Os sinos são agora o despertar. Um problema para os que vivem ao contrário, os noctívagos, os donos da noite. Veio-me à memória o conhecido pintor da noite de Lisboa. Pintor excêntrico, que corria o Chiado a invectivar pessoas e cuja vida estava envolta em múltiplas histórias e variados segredos.

De quantas noites somos feitos? Quantas tentativas goradas? Quantas alegrias e tristezas? De súbito há um véu que se abre e uma flor que aparece. Um cordão que é para toda a vida, mesmo que alguém encete uma viagem sem aviso prévio o cordão não quebra.

Outros úteros, a rua onde nascemos, o largo onde brincámos, a escola onde aprendemos, as primeiras aventuras. Tudo fica escrito na nossa memória. Tudo vai sendo vivido e por vezes renasce, reinventado. Histórias que só nós entendemos e vão mudando conforme vamos crescendo.

Um marco de correio, uma carta sem resposta, o desespero. É assim, meio desfeitos, que alguns esperam a visita nocturna do melro para a conversa ansiada.

«Tu inventas cada uma! Nunca vi ou ouvi esse melro.»

Fala de Isaurinda.

«Ele só vem muito tarde. A horas impróprias. Nunca apareceu por aqui.»

Respondo.

«Está bem, conta-me estórias. Tu lembras-te de cada uma! Estás cada vez pior.»

De novo Isaurinda e vai, um ar trocista.

Jorge C Ferreira Setembro/2023(408)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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25 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Um melro e o silêncio”

  1. maria fernanda morais aires gonçalves

    Em Lisboa durante o dia e noite nas horas em que são autorizados os corredores dos voos aéreos, é impossível pensar em sossegar.
    Onde moro, tenho árvores frondosas que além de melros e fora dessas horas abrigam muitas aves. Até Gaivotas e Piriquitos/Papagaios africanos voam em corridas por aqui, zona do Saldanha.
    Mas é a noite que os melros dois ou três cantam em concerto para mim. Isto Só mesmo lá para as duas ou três da manhã.
    Mas uma manhã destas tive uma visita particular. Um melro enorme de bico amarelo esteve num ramo da árvore à minha frente a assistir ao meu pequeno almoço.
    Não cantou nem piou.
    Só olhou para mim.

    Foi antes de eu ter ido para o hospital. Foi uma cortesia do melro.

    Se o vires diz-lhe que as minhas penas vão de vento em popa!
    Abraço. meu amigo Jorge.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda, minha Amiga. És uma privilegiada. Moraa muito peeto onde passei uma parte importante da minha vida. Esses pássaros são encantados por ti. Por isso te visitam e te dão sinais. Belo o que escreveste. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  2. Jorge C Ferreira

    Obrigado, Isabel, minha Amiga. Que bom estares aqui. As tuas palavras, as tuas histórias são uma alegria para quem te lê. Os felinos são assim! Muito grato. Abraço grande.

  3. José Luís Outono

    Numa leitura primária, o enredo do teu conto, toca-me e reduzo a velocidade de leitura, para um caminhar atento dos teus “despertares” simbólicos onde vitaminas muito bem, o acto de escrever e o impulso de ofereceres leituras fabulosas.
    O Melro tocou-me … como sempre com o teu encenar maravilhoso de traços criativos únicos.
    Seguramente as minhas noites, irão reflectir os momentos aqui trazidos e … quem sabe, num acordar acelerado escrever-te via sorriso :
    Por favor, nunca pares!
    Grande abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado, José Luís, meu Amigo, poeta. Sempre únicos os teus belos comentários. A minha gratidão. Abraço grande.

  4. Maria Matos

    Maria Matos, 5/10/2023
    Que crónica maravilhosa. Li e reli. Que lindas memórias, dos silêncios,,, locais maravilhosos onde a noite se faz dia , e à noite vemos auroras boreais!
    E um melro com quem falamos e que nos espera, e gosta da noite.
    Eu tenho dois ou tres, que me visitam cantando , logo de manhã, antes das camionetas do lixo, e que vêem debicar umas nêsperas que tenho à janela do meu quarto! Adoro- os. Como a sua crónica. Grande abraço meu Amigo! Bom resto de semana. Até breve

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Matos, minha Amiga. É sempre uma alegria ler aqui os seus comentários. Palavras que não dispenso. Palavras bem escritas e bem vindas. A minha gratidão. Abraço

  5. Coutinho Eulália Pereira

    Belo. Lido e relido. Continuo a ouvir o melro negro de bico amarelo que alegra a noite de insónia e espera pelo amanhecer. Conta do mundo que vê do alto da árvore. Chega longe,onde não chega o meu caminhar lento.
    Traz o som do mar, ora calmo, ora agitado. Tal qual o mundo.
    Traz o riso e o choro das crianças.
    O nascer do sol faz esquecer a insónia. Amanhã é outro dia. Permanecem as memórias da vida construída passo a passo.
    Obrigada Amigo, pela maravilhosa viagem com a companhia do melro cantor e contador de historias..
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália, minha Amiga. Tão bom o que escreveu. É sempre um gosto a sua presença neste espaço. Muito grato. Abraço

  6. Maria Luiza Caetano Caetano

    Lindíssimo o seu texto, tem de ser lido com atenção e muita ternura. Há quem procure o silêncio para uma bela conversa. Como o melro. Mas quantas vezes, ele será companhia de tantos, cujo silêncio já os satura. Tão bom conhecer muito mundo. Tudo tão diferente. Lugares onde a noite não atinge a escuridão a que estou habituada. Eu adoro a noite. Quase sempre ouço o carro do lixo. O silêncio é bom para mim. Tanta coisa que preciso pensar. Sei que conhece bem o branco puro da neve e já viu auroras boreais. Deve ser deslumbrante, como são belas essas noites. Que bem descreve, meu Amigo. Quase me mostra a beleza da natureza. A noite é calma tudo nos vem á memória, sim. Não esqueceu o Chiado que eu amo, a escola os lugares e tantas coisas que nos deram tantas alegrias, mas que se afastaram tanto de mim. Meu amigo, como tão bem escreveu, são tantos os que precisam da visita do melro. Tinha saudades de ler a sua linda escrita. Tão sua, sempre sensível. Com verdade e ternura.
    Adorei, um abraço querido escritor.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Maria Luiza, minha Amiga. A calma que o silêncio nos traz. O nosso canto especial, o canto de ler, escrever e pensar e um pássaro que nos alerta para a vida. As conversas especiais. Tão bom estar aqui. A minha enorme gratidão. Abraço grande

  7. Isabel Campos

    Os melros a par dos passarinhos, foram as primeiras aves que aprendi a identificar. Sempre ficaram comigo e se nenhuma outra conhecesse já me sentia entendida na matéria. Muito pequenita, chorava pelos cantos se algum era apanhado por um gato safado. Que tristeza ficava em mim, logo havia eu de tal ver, eu que gostava, que gosto tanto de ambos.
    Isto, remete-me ainda para o chorar, essa reação tão íntima, tão incontroladamente independente do nosso querer. Acho que como o riso, nada o segura.
    Depois, bem, depois … deixá-los vir, também eles nos vivem, nos consomem. Bom que é!!!
    Beijo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Isabel, minha Amiga. Que bom estares aqui. As tuas palavras, as tuas histórias são uma alegria para quem te lê. Os felinos são assim! Muito grato. Abraço grande.

  8. Filomena Geraldes

    também eu costumo ouvir um melodioso melro, meu querido cronista.
    será outro, certamente. que não o teu.
    este não me narra aventuras.
    lembranças de outrora.
    viagens às terras brancas e gélidas onde metade do ano é do sol de derramar e a outra, uma inteira noite de assombrar.
    este não tem voz de escrevinhador.
    não consta que saiba dos seus sonhos,silêncios,anseios nocturnos
    visões de jardins terrenos de delícias ou explosões de loucura e vertigens de desejos.
    é um melro aninhado no. parapeito
    do meu quarto, das seis para as sete.
    ainda o dia não se abriu.
    falamos uma linguagem similar.
    tranquila.
    eu conto-lhe das coisas pequenas do meu dia a dia e ele escuta.
    depois de tricotar trinados narra como é a sua passagem pelos corredores das urbes, dos prados e dos imensos oceanos.
    deixa meia dúzia de sementes em jeito de oferta. ao partir.
    e eu nada lhe ofereço.
    apenas o meu parapeito.
    quando tornar acho que lhe vou falar de ti.
    ler algumas das tuas crónicas.
    encantá-lo-ei com as cores dos dizeres.
    irei aguçar-lhe a curiosidade.
    apurar a imaginação
    entusiasmar o seu espírito aventureiro.
    entreter as horas paradas
    e revelar-lhe que ainda existe quem
    saiba deslumbrar inteiras plateias com estórias de verdade acompanhadas ao som.de um
    longínquo soneto de piano…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena, minha querida Amiga. Sempre belíssimos os teus poemas feitos comentários. Que bom serescfrequentadora assídua deste nosso espaço. A minha mais profunda gratidão. Abraço grande.

  9. Isabel Soares

    Uma crónica poema. A sonoridade das palavras. A beleza na sucessão das mesmas. Um ritmo que apela aos sentidos e adormece o “pensamento”.
    Percorremos o texto do cronista procurando desvendar o insondável. Há (sempre) surpresa e espanto. No âmago do “discurso”: um elemento que desvia o raciocínio para a pura criatividade. A abstração a solicitar uma intuição cúmplice.
    O desvario poético numa noite dia: o negrume a iluminar a vida (tantas numa só; indagação existencial pressentida). O amor a ser permitido na escuridão e ruídos escolhidos (?). A polaridade. A morte ensombrada no fim antes do tempo. Travá-la para uma humanidade maior. Onde não se perca o rumo. Onde não se perca a identidade (que se descobre plural). Estar em relação e na relação continuando o sentido mesmo que tantas vezes atropelado. Ser em espelho.
    A noite símbolo instaurada desvelando a multiplicidade de “seres” que o habitam (ou ser, facetas?). O dia subjugado porque a noite encerra a nudez do essencial.
    Desviar a escrita para o sonho luz: o melro. O diálogo dissonante, mas estruturante. O anseio que se auto conforta no desdobramento de si. A esperança nesta possibilidade sossega (provisoriamente) o poeta. Há uma companhia que o espera na próxima noite, Nas próximas noites, no próximo “momento”.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Munha Amjga. Sempre belos e assertivos os seus comentários. É um gosto ter a sua presença neste nosso espaço. Muito grato pelas suas palavras. Abraço grande.

  10. Fernanda Luís

    Boa noite Jorge
    Linda e divertida história, muito ritmada. Deu-me gozo ler e a embarcar na aventura.
    O melro Veio mesmo a calhar.
    Parabéns.
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda, minha Amiga. Que bom ter entrado e vivido esta história. É tão gratificante para quem escreve. Muito grato. Abraço grande.

  11. Margarida Pires

    Crónica de Jorge C. Ferreira de 2 outubro 2023 – O melro e o silêncio

    Que belo texto!!! Quase todos (ou apenas os eleitos) têm um melro que a desoras vem conversar connosco e recordar momentos do passado. Momentos esses que por vezes se agigantam e nos envolvem por completo e outras vezes se encolhem até serem apenas um resíduo de uma história velha. Felizes os que têm um melro assim!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Margarida, minha Amiga. Ter alguém que nos vem visitar a desoras para tentar descobrir a vida numa conversa encantada. Saber ouvir é tão importante. Muito grato pela sua presença, sempre uma alegria. Abraço grande

  12. Cecília Vicente

    Um inegável ambiente de festa onde todos se misturam nos seus próprios cheiros, múltiplos perfumes dão sinal de festa, deixarão-se ir por ruas e ruelas. Que músicas? ….
    Lugares frios mas quentes de alvoroço, tudo num só sentido, viajar como se o mundo tivesse no caso um só lugar, talvez o merlo soubesse a rotação e só se desse a conhecer a alguns enquanto outros dormiam. Valeu a pena a espera, sem relógio com hora marcada, nem carteiro que entregasse carta, apenas uma virar de página desse imenso livro onde tudo e muito se passa para contar num infinito de folhas a escrever. Obrigada meu amigo. Abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília, minha Amiga. Que belo o que escreveste. Desta a volta à vida e conecheste o inesperada. Que bom ler o yeo comentário ee saber-te presente. A mnha gratidão. Abraço grande

  13. conceição lima

    A proposta foi um passeio…Segui-te, vi, senti , ouvi o melro, ouvi a Isaurinda vi nascer a aurora …Filtrei os barulhos, tu és homem contido e não disparas…Só para te dizer que me deste a fórmula de ter todos os sentidos em alerta! Parabéns, Jorge! Ler-te, agora mesmo, ao final da tarde, com o sol a esvair-se, é pacificador!!! Parabéns!! Gostei do passeio!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Conceição, minha Amiga. Que bom estares aqui neste nosso espaço, com essa admirável leitura. Foi muito reconfortante ler-te. A minha gratidão. Abraço grande

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